segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Excertos 1

Começo hoje esta nova rubrica com o nome de Excertos. São pedaços de texto, poesia ou prosa de autores variados, que apreciei e achei interessante compartilhar convosco.

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto.
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe
Quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real,
certa, desconhecidamente certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. (...)

Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida (...)

Se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz.
Visto isto, levanto-me da cadeira.
Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria metendo o troco na algibeira das calças.
Ah, conheço-o;
é o Esteves sem metafísica.
O Dono da Tabacaria chegou à porta.
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus,
gritei-lhe Adeus ó Esteves!
e o universo reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança,
e o Dono da Tabacaria sorriu.

Fernando Pessoa, Tabacaria

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