domingo, 24 de fevereiro de 2008

Para o meu pai

Não, não quero ver-te para aí deitado imóvel nesse caixão arrepiante.
Não, não quero olhar a tua cara pálida, sem vida, teus olhos fechados, teu rosto sem expressão.
Não, assim não … aquilo é o que resta do teu corpo velho e cansado, mas aquele já não és tu …

Prefiro imaginar-te lá por cima, sentado numa nuvem, com o teu novo corpo sem massa, discorrendo entusiasmado acerca de tudo e de todos, com os teus amigos de sempre à tua volta, numa amena cavaqueira … está lá o Geirinhas com o seu sorriso gaiato, o Zé Paulo com o seu falar alentejano e tantos outros colegas dos velhos tempos de Liceu de Évora … recordam alegremente todas aquelas ruas e calçadas, os velhos cafés, as raparigas jeitosas, aquelas velhas salas de escola com as suas carteiras de madeira e lá no cimo do estrado o professor austero de bata branca e ponteiro em riste, vítima de tantas brincadeiras, carrasco de tantas reguadas … Recordam sem mágoa, nem tristeza, agora que o corpo já não lhes pesa e quando todos (ou quase todos) já estão novamente presentes, acabada que foi a separação que a vida lhes impôs. Festejam talvez o regresso do José ao convívio dos ausentes, depois de tantos anos … Para eles agora não há limites nem fronteiras, as horas não vão interromper aqueles momentos, não há já compromissos, trabalhos, telefones ou cansaço que os separe, daquele prazer intemporal e delicioso.

Prefiro imaginar-te lá por cima, sentado numa nuvem, de mão dada com a minha mãe, a tua paixão de sempre, companheira inesquecível, amor único de muitos anos … agora estão juntos de novo e assim hão-de ficar, sem mais restrições, sem doenças, nem dores, nem maleitas … agora finalmente já não há filhos para tratar, trabalhos a fazer, obrigações que cuidar, horários a cumprir … agora são livres finalmente e podem namorar de novo, já nada, nem ninguém os voltará a separar …

Prefiro imaginar-te lá em cima, sentado numa nuvem, numa daquelas emocionantes e prolongadas tertúlias de café, com os teus amigos de Setúbal … estão lá o Floriano, o Amadeu, o Saião e tantos, tantos outros … filosofando sobre a Vida, o país e a política, os filhos, as mulheres, os empregos, o futebol … agora a conversa pode prolongar-se indefinidamente, podem sair dali e imediatamente estar em qualquer outro lado, podem observar os vivos, cá em baixo na sua labuta diária, sentir os seus anseios, analisar as suas preocupações … podem saltar no ambiente e recriar tempos passados … talvez possam até redescobrir verdades escondidas, desmontar mentiras oficiais, ou validar teorias e hipóteses várias … Sei que eras um almanaque (como alguns amigos te chamaram), uma enciclopédia de conhecimentos muito variados e sei que estarás sempre pronto e disponível para dinamizar essa tertúlia e que todos esses teus amigos te irão ouvir com o mesmo fervor e admiração de sempre.

Prefiro imaginar-te lá em cima, sentado numa nuvem, recriando fielmente a tua Arraiolos de infância, brincando na rua de calções, com os teus velhos sapatos, meio rotos e recosidos pelo sapateiro da terra, correndo atrás de uma bola de trapos, num campo de terra com balizas de paus … com uma felicidade imensa de menino, uma energia espectacular, que nem os joelhos machucados ou as rasteiras malandras, conseguiam fazer parar …. Vejo-te com o teu pião preferido a rodopiar a grande velocidade e a fazer estragos nos peões adversários, vítimas da tua perícia … vejo-te debruçado sobre a terra a jogar ao bilas (berlinde), de covinha em covinha, tentando escapar aos abafadores adversários, numa excitação delirante de uma infância nas ruas, simples e ao mesmo tempo tão rica …. Vejo-te com os joelhos na terra numa competição emocionante de calhicas, numa pista sinuosa e vibrante, de areia, com muitas curvas difíceis, subidas de terra batida e pontes de tábua, sobre ribeiros imaginários … a tua callhica é um fórmula 1, tampa de uma garrafa de Laranjina C e voa sobre a pista, prestes a conseguir a vitória, na meta de ramagem de oliveira, lá á frente … vejo-te com os teus amigos da rua, a saltar sorrateiros os muros de pedra do quintal do vizinho forreta, para roubar umas laranjas deliciosas, rápida e eficientemente, antes que o vizinho apareça furioso, de caçadeira em punho, para mandar uns chumbinhos, naqueles rabiosque malandros.

Uma lágrima furtiva desce pela minha cara, outra e outra se segue … agora já é um ribeiro, que se solta, de cada um dos meus olhos …. A vista toldada por tanta água, custa a distinguir estas letras, colocadas em fila sobre o papel … não interessa, preciso continuar … este texto não está acabado … talvez nunca o venha a estar … é preciso continuar ….

Porque te fostes já embora ? Porque não ficaste só mais um bocadinho ? Porque não tivemos só mais uma daquelas longas conversas, que só contigo tinha ? …. Porquê ? … 81 anos não chegaram, todos queríamos mais …. mais …..

Tanta falta me vais fazer ! ….. sinto-o mais agora que partiste, do que antes, quando ainda cá estavas entre nós … Foste o meu mentor, a minha referência intelectual, o meu conselheiro particular … recolhia a ti, sempre que precisava de tomar uma grande decisão e apesar de nem sempre seguir o teu conselho, ele era sempre ponderado e considerado cuidadosamente .

Separava-nos um grande fosso de gerações. O mundo e o país evoluiu muito entretanto … a minha adolescência foi marcada por uma revolução, que a mim me entusiasmou e a ti te magoou … Fui nessa altura o filho rebelde e estivemos então algo separados, mas nunca perdemos o laço essencial, nunca desfizemos a comunicação …. Aprendi então a respeitar aquilo e aqueles, com quem não concordo, aqueles que tem uma opinião, ou uma visão diferente da minha … e mantive essa filosofia até hoje, tentando criar pontes, onde elas não existiam, apagar incêndios insensatos e valorizar o que nos une, em detrimento daquilo que nos separa …

Depois, mais tarde, passada que foi a adolescência e depois da minha experiência africana, voltámos a reaproximar-nos e gradualmente as diferenças foram sendo desvalorizadas, enquanto as semelhanças se iam reforçando, com o passar dos anos ….

Tenho tanto de ti ! Tanto ! … Com o tempo essas influências foram-se tornado mais salientes, mais presentes, mais marcantes e sei agora, que daqui para a frente, vão ainda acentuar-se …

Agora que já não estás presente, completou-se o testemunho de gerações … a tua geração saiu de cena e agora é a minha que está ao volante desta existência terrena … agora as minhas responsabilidades são ainda maiores … tenho que cuidar do passado, assumindo a meu cargo o tratamento dos mais velhos que ainda restam … tenho que gerir o presente, cuidando do que existe, decidindo que caminho seguir, sempre que houver uma encruzilhada … e tenho que preparar o futuro, cuidando da próxima geração, a dos meus filhos, aconselhando-os e preparando-os para daqui por uns anos serem eles a assumir o controle, a serem os pilotos desta nave …

Sinto também, que apesar do teu corpo já cá não estar, irás continuar sempre presente na minha mente e no meu coração e irás acompanhar-me ao longo desta estrada, que atravessa agora uma zona montanhosa, com muitas curvas, ravinas e desfiladeiros, que é preciso ultrapassar até atingir aquele vale …. Onde iremos repousar, divertir-nos, mergulhar nas cascatas e gozar o seu sol. Lá talvez exista alguma passagem , que me leve ao teu encontro de novo , onde voltaremos a falar, a retomar todas aquelas conversas interrompidas … aqueles momentos inesquecíveis …

Por isso, em vez de um adeus, deixo-te apenas um até já …. Até sempre …

5 comentários:

Manuel Ramos disse...

Um abraço, amigo!

Anónimo disse...

... não te posso oferecer mais, neste instante, do que as lágrimas sentidas que o teu texto me provocou... Amanhã completam-se quatro anos sobre a partida do meu pai e... - certamente me perdoarás - , ao ler o teu texto pensava em ti e na perda que sofreste mas, também, no meu pai... e em tudo o que gostaria de lhe ter dito e nunca lhe disse - o quanto gostava dele, sobretudo e sobre todas as coisas...
Um grande abraço!

One Love
Marley

Anónimo disse...

É tão difícil esse adeus……que não consegui conter-me ao ler este post......
Já perdi o meu pai há muitos anos, e em alguns momentos ainda continuo a chorar a falta que me faz.
Os anos vão transformando as saudades mas elas parecem não se diluir. A morte é uma inevitabilidade...não há como contorná-la. O melhor é aceitar....Resta-me a memória e os sonhos … e encontrar formas positivas de lidar com as emoções.
Bjinhos e um abracinho para ti
Xinha

Anónimo disse...

Sabes que não sou de grandes elogios e por isso gostaria de te dizer que este foi dos textos mais bonitos que li ultimamente.

Dificilmente alguém que tenha passado pela mesma situação conseguirá lê-lo sem que os olhos se encham de lágrimas, mas quero agradecer-te o facto de meteres reforçado a ideia de que devíamos tratá-los tão bem quanto possível enquanto eles cá estão, porque depois já será tarde.
Tal como tu, quantas e quantas vezes tenho pensado em coisas que lhe deveria ter dito enquanto ele esteve ao meu lado e que não lhe disse. Como ele ficaria feliz se eu lhe tivesse dito mais vezes o quanto gostava dele! Agora é tarde!

Obrigado Zacarias!
Esteja ele onde estiver, certamente saberá esperar o tempo que for necessário para te ter de noivo ao seu lado e te apertar entre os seus braços. Não percas nesse momento a nova oportunidade de lhe dizeres quanto o amas.

Saúde disse...

Nestas horas tão difíceis só te podemos enviar um grande abraço. Força.
Ana e Dinis